O rafeiro branco é o único que não revela inquietação
pela acutilância do estado policial, na chegada a Xinjiang, uma nacionalidade
diferente pela raiz histórica e uma mesma cidadania por oportunidade
geopolítica.
Rebola-se no alcatrão da via rápida de seis faixas que,
das suas sete e meia da manhã de movimento reduzido, ainda exala uma
temperatura suportável da brasa que se espera hoje na segunda maior depressão
do mundo: Turpan.
Na segunda barreira policial de um dia em que entra
uma nova língua no estacionário chinês, o árabe.
Apenas o rafeiro branco se rebola no alcatrão morno,
mesmo em frente à mesa do polícia cheia de passaportes e vazia de instruções,
como que a relativizar a nossa relevância e a nossa mania de complicarmos o que
desconhecemos.
E, aos olhos do rafeiro branco, não há diferenças
substanciais entre os nós e os eles porque para ele, falamos todos a mesma
linguagem, afinal de contas também nós não distinguimos um ladrar chinês, uigure
ou ocidental e para ele, não passamos de um bando de humanos, de raças e roupas
diferentes, rebolando-se à volta de uma mesa de madeira cheia de entulho,
provavelmente e, segundo ele, para passar o tempo no meio da autoestrada que
ainda não tem movimento, não porque seja cedo
mas porque o futuro ainda não chegou.
Achamos nós, não ele, porque estes espaços de quase
futuro exalam um forte odor de presságio, mas para o rafeiro branco cheira
apenas a alcatrão fresco e a poeira do deserto.
E, no silêncio da manhã na via rápida do futuro, os
humanos continuaram a rebolar-se à volta de uma mesa de madeira, muito depois
do rafeiro Han se ter fartado e ter desaparecido por entre as bermas cobertas
de vegetação, seca e rastejante, daquela que rebola com o vento e transporta
recordações pelo deserto adentro, e pelo seu à vontade e forma discreta de
retirada, talvez fosse mesmo um cão local.
E era a nossa vez de interiorizarmos as crenças
chinesas nos demónios que, para lá das portas para as regiões ocidentais,
esperavam os viajantes que por ali se atrevessem a passar, os monstros da terra
incógnita.
Mas, ao contrário dos tempos da antiguidade, alguns de
nós (pelo menos um de nós) adivinhávamos o que existe para além, somos ou não
provenientes das terras do ocidente, e nunca deixámos de nos convencer que os
monstros da terra incógnita não passavam de um mito de Adamastor, devidamente
fardado, destinado a testar a nossa perseverança e avaliar a nossa fibra, agora
que tínhamos abandonado as terras introspetivas da mãe china e nos iríamos
embrenhar nas terras das novas multiculturalidades.
Bem, talvez alguns de nós tenhamos acreditado mesmo
nos monstros da terra incógnita quando desembarcámos na luz fria do amanhecer,
nós e a idosa uigur, conduzidos através dos corredores da gare escurecida pelo
tempo em direção a uma sala de espera que se assemelhava a um monumento do
antigo regime, e tivemos uma visão que só conhecíamos do cinema, caras fechadas,
detetores de mentiras e metais, um guichet e uma eternidade de espera por um
destino incerto para os viajantes do expresso da meia-noite, mas eles tinham um
ar tão familiar, para quem vinha da China.
Mas ainda bem que havia quem acreditasse que, quando
sol nascesse e dissipasse as sombras da madrugada, iria submergir das areias do
deserto um cidade repleta de memórias nómadas, um povo que não conhecia de
forma precisa os contornos das suas fronteiras e gentes que reconheceriam os
estranhos porque o seu desapego às raízes os tornava cidadãos de todo o mundo e
de qualquer lugar.
E o cão rafeiro a rebolar-se era um bom presságio.
E a cidade devolveu-nos a agitação e o ruído das
crianças que pululavam na poeira que cobria o pátio do restaurante, a mesma
matriz de uma alimentação comunitária pela manhã, mas a sala estava forrada de
sons e reinava uma anarquia de pão, gorduras e carne e uma partilha de vidas em
redor das mesas do pequeno almoço, a primeira refeição do dia era como se o
bairro celebrasse a boda dos filhos pródigos, todos os dias, e não havia rostos
enfiados na sopa de noodles e olhares desafiando o infinito em silêncio, sem
espelho.
A entrada nas portas de Turpan foi quase triunfal,
afinal havia razões para que ela fosse impenetrável à intromissão de estranhos,
“é o princípio de uma china diferente, menos uniforme, menos imperial” porque
prevaleceu durante séculos nesta zona de fronteira a audácia e a inquietação
dos povos nómadas.
As primeiras impressões são, por convicção, as que
prevalecem no subconsciente quando se alargam os fossos da memória.
Mas em Turpan, a aculturação ao poder dominante é tão
galopante que afoga as primeiras impressões, ao longo de um só dia e, o valor
histórico das ruínas, como o primeiro local que disfrutámos sem limitações e
que datava mesmo do período da rota da seda, apenas prolongou a miragem que
crescia com a sede que apenas um magnifico café gelado de origem chinesa ,acalmou.
A sede e as miragens.
A água será sempre o primeiro e o último dos milagres
do deserto e, quem a domina, estabelece as regras e os equilíbrios na rede de
entrepostos que liga os mercados e as civilizações e o milagre da água em
Turpan, explica-se pela engenharia e pelo cálculo exato dos desníveis, uma
ciência milenar sem dono preciso porque o mundo já foi global e, nem sempre, as
heranças externas se construíram sobre tragédias e cadáveres.
Mas à chegada ao vale, os túneis azul e púrpura irradiavam
um sentimento de pertença dos novos donos do deserto e de todas as fronteiras
do ocidente.
Uma afirmação folclórica de poder, com chão de vidro
sobre a água gelada das montanhas, uma afirmação de superioridade do presente
sobre o passado, dos conquistadores sobre os inventores.
E o frio dos subterrâneos de Turpan diluiu o que restava
das primeiras impressões, antes ou depois do nascer o sol na planície.
A mesquita de Turpan
é um templo sóbrio, singelo que chora sozinho a poeira dos tapetes que
não voam e a fé que não se professa.
Não há fiéis como havia em Xian, também é verdade que ninguém
se preocupa em fingir e a mesquita de Xian vivia enclausurada entre jardins
orientais e pagodes chineses, e somos obrigados a conceder que talvez a
profissão de fé exija algumas cedências formais, (especialmente) aqui ou em
qualquer outro lugar.
Mas às portas do deserto as vozes do profeta soam fracas
e as mensagens difusas.
As vinhas de Turpan são o ultimo refúgio da comunidade
uigur, crianças que brincam nas ruas, velhotes sentados à porta das casas, das
oficinas e da pequena mesquita da rua, famílias que dormem e comem no pátio
interior, as camas que se veem do exterior e pressente-se que a comunidade
professa dentro de portas, as crianças acenam com curiosidade, puxam os adultos
para a curiosidade e transportam os seus sonhos, em cima das suas motas de
caixa aberta.
Enquanto aguardam, há tinta vermelha que omite alguns
símbolos da fé, desenhados em azulejos colados sobre as portadas da rua sem
asfalto, que transporta pelo ar os tons de laranja do fim de tarde de verão.
No final da rua acaba o bairro, atravessado por uma
avenida de quatro faixas, arranha céus de pequena largura a ameaçar invadir o
bairro e um carro de patrulha circula a avenida em baixa velocidade e sirenes
de luz ligada.
Não obstante, a velhota sentada numa cadeira no
passeio insistiu em virar se para a luz, compor o vestido e posar para uma
fotografia de família.
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