A cidade moderna mantém-se conservadora entre quarteirões de traça
colonial e blocos de construtivismo socialista, uma modernidade que resiste ao
império de vidro e dos céus que povoa o imaginário e as ambições das grandes
metrópoles asiáticas.
Fora dos limites da cidade velha, as avenidas são largas, desenhadas a
esquadro e régua, não identificamos de imediato um estilo ou uma época, poderia
ter começado com os franceses, ou com o que sobrou das bombas e da humilhação
dos franceses, ou mais tarde, resultado da construtivista amizade vietnamita-
soviética. De todos eles, mais do que provável.
As alianças ou o exercício de poder esculpiram a fisionomia das
cidades, sobretudo daquelas que a história se encarregou de destruir metódica e
persistentemente, apagando definitivamente as suas origens. Especialmente por
isso, não há muitos edifícios antigos em Hanói e a história conta-se através
das poucas reconstituições, mas especialmente do apelo às memórias recentes em
que nem sempre a forma corresponde ao conteúdo, abraços ao camarada Fidel nos
jardins da embaixada de Cuba, uma magnífica mansão, herança dos colonialistas
franceses, a fábrica do café e dos chocolates, interiores revestidos de cheiros
e sabores adocicados e um invólucro de arquitetura brutalista que partilha o
entroncamento com o edifício do Comité Central, em cores de um amarelo de
República Popular, mas sem dúvida mais um vestígio arquitetónico da colonial
França.
No Templo da Literatura,
provavelmente o único pedaço de história antiga de Hanói, em que o involucro
corresponde ao conteúdo, respiramos uma pausa na vida frenética das ruas nos
jardins que guardam a memória dos discípulos de Confúcio, mas dificilmente
reconheceríamos neste local de culto e meditação a primeira universidade do
Vietname, não fossem as estabulas protegidas nos alpendres forrados de uma
madeira recente que nos garantiam ser o reconhecimento académico do quadro de
honra dos alunos que a frequentaram durante quase oito séculos.
E enquanto vagueávamos ao longo dos três pátios do templo, universidade,
filosofia e retiro, tomávamos uma consciência súbita que essa incapacidade de
compartimentar a educação, a fé, a religião e os princípios de uma filosofia de
vida nos iria acompanhar ao longo do nosso processo de aculturação do Vietname,
primeiro estranho, quase irracional mesmo, porque afinal de contas o ocidente é
laico, e tendemos a guardar a religião longe dos olhos académicos, depois
afinal porque não rezar aos princípios e filosofia de vida de Confúcio,
baseados no respeito por um conjunto de valores universais, afinal porque não
deixar oferendas aos antepassados, objetos quotidianos que lhes agradariam
enquanto vivos, como fruta, bebidas ou cigarros, a única forma possível de materializar
um respeito e um amor humano, ou queimando notas de mil duangs em pequenas
travessas de metal, um fumo espesso que liberta os espíritos antepassados e
revela desprendimento material.
Mas o Templo é, antes de mais, um símbolo da independência do Vietname
da tutela chinesa, no século nove, construído em 1070 por ordem de Lý Thánh Tông, o oitavo imperador vietnamita, com a ambição de construir um país a partir do conhecimento e do ensinamento dos princípios Confucianos de vida, uma universidade que formou os futuros imperadores, mas também os funcionários do reino, ao que consta, recrutados em todas as classes sociais, baseados exclusivamente na capacidade e no mérito.
Tão imbuídos estávamos neste súbito regresso ao passado longínquo, retiro da cidade frenética, um convite à cuidadosa revisão dos nossos princípios de vida à luz de Confúcio que mal reparámos nos cartazes cuidadosamente desenhados por cima dos urinóis das casas de banho do templo, onde o paternalismo do grande irmão nos ensinava como urinar de forma adequada neste local tão laico quanto democrático.
E, em Hanói, ninguém duvida da independência e do espírito
revolucionário dos seus habitantes, o culto a Ho Chi Min nas fachadas do
edifícios públicos, a abençoar as crianças na escola, os frágeis e os doentes,
a vida vivida ao longo dos passeios e na berma das estradas, uma azáfama
demasiado extrovertida e sem a distância social recomendada pelos espíritos
cartesianos, uma realidade que tende a empurrar os turistas ocidentais para os
terraços, de onde se pode dialogar com a cidade, mas a uma distância segura,
longe dos becos sem saída em que frequentemente se transformam os passeios
abertos onde tropeçamos em mesas e cadeiras de miniatura que servem cerveja
artesanal ou café de ovos, ou bancas que expõem as vísceras da diversidade
alimentar do Vietname.
Sim, ninguém duvida que os vietnamitas se libertaram do jugo colonial,
ganharam a guerra ao Satã americano, que os traiu no pós-guerra, e tornaram-se
amigos dos maiores experimentadores da revolução bolchevique, quando a opção
era manter as distâncias do seu ódio de estimação (e da história), também comunista,
mas, acima de tudo, chinês.
Mas apesar dos sinais, e das amizades celebradas pelo regime nas
fachadas e na retórica, Hanói respira uma mestiçagem que procura congelar o
momento, como se a atmosfera tivesse sido criada em laboratório, ao longo de
décadas de investigação.
São as galerias de arte que, entre novas formas e cores, transformam o
grande líder em ícone pop, é a cultura do café que invade todas as esquinas em
espaços que se abrem para a rua como templos pagãos de cheiros intensos e fumos
espessos, mas é sobretudo o ambiente errante, vagabundo, caminhante e
observador que deambula pelas ruas da cidade.
Com condescendência, uma tolerância quase indolente, incompreensível na
linguagem, universal no sorriso de quem absorveu os antigos colonizadores e os
aperfeiçoou.
“Flaneur” é a palavra que melhor define o quotidiano da urbe, sem
dúvida asiática, mas absolutamente distintiva de toda a Indochina, viríamos nós
a perceber mais tarde, e suspeito, não repetível no continente.
No final da tarde, quando regressávamos do passado, misturámo-nos com a
multidão que recolhia as crianças nas escolas e enchia as ruas no último fôlego
do dia, apagavam-se os fornos e as fogueiras, recolhiam-se as bancas e as
mobílias, a noite cai súbita nos trópicos e confirma-se a suspeita de que, em
Hanói, se respira alma velha.
Adormecemos sem respeito pelo jet lag, convencidos em incorporar a
meditação nas nossas rotinas, a única forma de apagar os ruídos da cidade
acordada.
E sonhámos muito, com os movimentos repetidos e monótonos do espetáculo
de marionetas aquáticas, uma música metálica que salpicava o palco e incomodava
a meditação de Buda, mas sobretudo com os ruídos dos trópicos, as ventoinhas a
cortar o ar quente e a chuva que cai apressada nos telhados de zinco que
espreitavam para o nosso sono agitado de um recém-chegado ao outro lado do
mundo.
Não há formas melhores nem piores de regressar ao presente.
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