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segunda-feira, 2 de junho de 2025

Ter vinte anos não é uma escolha

 



Ter vinte anos é o tema do festival fotografia europea e não é sempre um festival de imagens felizes.
Ter vinte anos não permitirá a ninguém afirmar que esta é a idade mais bela da vida. 
Há uma sensação de medidas que não enquadram em padrões de serenidade e alegria em muitas das histórias que desfilam em frente dos nossos olhos. 
E, no roteiro pelo palácio de mosto, ficamos entregues ao silêncio do público ausente e das personagens que saem dos ecrãs, das telas e das páginas dos livros, sem um som sequer, porque a fotografia é um filme mudo em que os sons se imaginam a partir das combinações de cores e pela intensidade dos contrastes. 
Nas salas do palácio mosto, ainda bem que há solidão na sala e solenidade em cada imagem partilhada, em cada história que se constrói a partir de uma ideia ou de experiências vividas. 
Porque ter vinte anos tem de ser uma experiência intensa, intangível como o título da primeira história, que mostra jovens cuidadores que dedicam parte do seu tempo a tomar conta dos familiares mais velhos, contraditória como a revolta que emana da primavera silenciosa, uma história de confrontação em nome do ativismo militante pelo clima, mesmo que a sua raiva seja  demasiado zangada. 
Em adolescência florescente, escolheram-se só livros que exploram a adolescência como o momento de transformação, física, emocional e social, em que os fotógrafos capturam a rebelião, a fragilidade a descoberta e a pertença em culturas e contextos tão diversos. 
Sempre num silêncio que exprime o presente e o futuro, sem que se possa escolher qual é a forma de adolescência mais inquieta 
E se a vida tivesse sido diferente? Pergunta um dos autores
Não é uma dúvida para quem tem 20 anos, diríamos nós, mas Matylda em Octopus Day pergunta-se já, então e se eu tivesse feito escolhas diferentes, tivesse vivido num local diferente ou mesmo que fosse de um género diferente e, em quarenta e oito horas apenas, a artista pede emprestada a vida  e  a identidade dos outros, vestindo a sua pela e vivendo as suas personalidades 
Independentemente de sermos capazes de  reconhecer nas imagens, que a experiência distorce a perspetiva como nós nos vemos no papel dos outros, reconhecemos nas imagens de Maryna que foi aos vinte que nós devemos ter feito quase todas as escolhas que definiram o que fomos décadas depois.
E se nós tivéssemos feito escolhas diferentes?
Ter vinte anos não é uma escolha!




quinta-feira, 29 de maio de 2025

Unire under 35

 


As memórias são o espelho de uma alma velha, de quem viveu a circularidade completa e de quem se refugia no longínquo passado por não suportar mais o peso do presente ou, simplesmente, já por ausência. 
Mas não, as novas tendências estéticas e de narrativa da nova arte são remotas e profundas, remetem nos para as tradições da aldeia, e as práticas de manufatura comunitária, para os rituais de passagem, laços de sangue e memórias de família ausente, um pai morto, fragmentado pelo terror das memórias policiais ou de um pai ausente que um filho pretende reconstruir o que poderiam ter sido as suas memórias, encenando o que teriam sido os passos do pai, os seus locais e as suas rotinas, na pele dele e nas suas fardas até conseguir abraça lo de novo num final redentor e feliz.
A coerência estética e  narrativa dos jovens under 35 é imaculada e o resultado é tão fluido e compreensível que apenas possível com um complexo pensamento abstrato.
Mas não deixa de ser perturbador que estes jovens sejam demasiado novos para ter tantas memórias.




Avere Vent’Anni

 




Hoje a trenitalia está em greve e a mobilidade está inquieta.
Não há previsões, ninguém está para explicar, nós seguimos os passos dos autóctones, do binário quatro, para o binário um e finalmente o oito, somos um rebanho de seres obedientes que, hoje, se conformam porque sem mobilidade, esmorece a nossa irreverência e a vontade de partilhar posts de gente feliz. 
Os rostos estão fechados, é possível que todos saibam que a democracia dá trabalho mas na estação central de Bologna não prolifera o espírito militante, antes uma atmosfera  de conformismo suicida que antecede as grandes depressões. 
No binário um, enquanto todos olham para o quadro eletrónico que vomita cancelados, a todos os minutos, como se os comboios, de repente, se desvanecessem, entrassem na plataforma 7b e fossem transportados para outra dimensão 
Enquanto, do alto da sua locomotiva elétrica, orgulhosamente debruçado sobre a janela que vigia a multidão no binário, o maquinista fuma o cigarro da contestação social, e certamente que o número um é importante, uma huelga segundo o único ser humano que, fechado numa barraquinha que devia ser de informações mas não era, que sabia pouco do que se passava fora do seu cubículo e também tinha uma versão muito lata da ibéria. O costume. 
Hoje, na era da automação total, sem bilheteiras nem revisores, com os únicos humanos que restam em huelga, não há comboios e a automação não resolve os imprevistos. 
Com alguma (pouca) vontade dos autóctones - eles até são ruidosos e felizes entre eles o pior mesmo é com os outros, seja no trabalho seja no lazer - mantivemo-nos à tona dos carris, à espera de um milagre, que até aconteceu, muito lento e atrasado
Quando não há imprevistos a eletrônica até funciona. 
Nos outros dias ficamos com saudade do estado social. 
Mas automação significa isenção de contestação e quando a maquinaria avaria e as bilheteiras precisam de ser ressuscitadas, o estado social desperta nervoso. 
Entre Bolonha e Reggio Emilia, enquanto o fura greves leva o rebanho à província, sem forças sequer de se revoltar - afinal de contas os trabalhadores são eles – lembro-me que a Itália não  mudou assim tanto desde os meus 20 anos, altura em que descobria os comboios de Itália, é verdade que com menos diversidade e menos interatividade do que hoje, ,mas a mesma balbúrdia Latina sem governo. 
Porque hoje em Reggio Emilia mora o festival fotografia europea, e o tema este ano é ter vinte anos, ora pois. 
E o regresso ao passado começou logo na realidade.




terça-feira, 27 de maio de 2025

Santo Mungo

 


Bruce chegou cedo a St Georges Square, o novo centro do iluminismo escocês, de forte sotaque da nova britânia porque, em Glasgow, o iluminismo não tem a ver com o significado das ideias, mas com o poder do dinheiro. 
E o Ato da União de 1707 abriu o mundo das colónias britânicas, aos comerciantes de Glasgow que, depressa, tomaram conta da importação e distribuição europeia do tabaco americano. 
Uma enorme riqueza acumulada debaixo do símbolo da caravela sobre a esfera armilar, um mundo que lhes pertencia e que ajudou a construir a nova centralidade de Glasgow. 
Sempre que se aproximava do porto, um barco cheio de tabaco, havia um vigia, na torre do edifício dos merchants que corria a avisar a bolsa de mercadorias, porque na cidade dos comerciantes (e dos artífices) havia o hábito de anunciar no mercat cross, todas as notícias que poderiam interessar ao povo. 
Numa época em que execuções eram também um apreciado entretém do povo. 
Bruce, o historiador informal, o entertainer com um sentido cronológico apreciável, nunca procurou esconder que a verdadeira natureza escocesa é rufia, sardenta, olhados pelos distintos ingleses como um bando de revolucionários que era melhor não conviver com eles, para lá do norte de Inglaterra. 
Até que William Scott reinventou a Escócia através da literatura, e descreveu nos seus livros a verdadeira essência da sua história e da sua personalidade aos snobs do Sul, um herói de Edimburgo que comoveu os ingleses, mas que Glasgow colocou no topo da praça de George, o rei (inglês, claro) que na praça com o seu nome nunca teve direito a estátua, por mau comportamento nas relações internacionais. 
Os indómitos habitantes de Glasgow não perdoaram a George ser uma desgraça enquanto rei guerreiro e, ainda por cima, inglês. 
A velhinha inglesa que nos seguia era uma fã de Walter Scott e sentia um quase orgulho da irreverência de um povo que, em 1986, colocou um pino de trânsito na cabeça da estátua do inglês Wellington, para variar um inglês bom guerreiro, mas inglês, apesar de tudo. 
Passados dez mil libras de custos camarários para retirar o pino que sempre voltava à cabeça do almirante, o poder local aceitou a ideia de que o inglês passava a ter um capacete, para a eternidade. 
Belicosos escoceses 
Só o santo Mungo parece ser consensual porque fundou Glasgow muito antes de existir um país chamado Escócia, um humilde cristão oriundo de um reino governado pelos vikings, que construiu a primeira catedral da cidade e pregou a fé durante toda a vida, chamando os crentes para a igreja com um sino oferecido pelo Papa, um homem a quem são atribuídos quatro milagres, uma vantagem mínima, mas suficiente, para ser santo. 
Mas o artista de rua que o pintou na parede que vigiava a porta principal da catedral, teve uma visão contemporânea do santo Mungo, um homem bom que se despojava dos rituais e da riqueza dos homens para interiorizar todo o sofrimento do mundo, encarnado num velho sem abrigo. 
Perante a indiferença dos transeuntes, o artista abusou da sorte é escreveu na parede do parque de estacionamento "não estacionar ou amaldiçoaremos o teu carro", entre lendas, histórias de fadas e de monstros, a ameaça de maldição espelha a verdadeira alma do highlander. 
Pelo menos, segundo a insuspeita opinião da velhinha inglesa que nos seguia. 
Mais uma alma capturada pela visão romântica de Walter Scott!