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domingo, 2 de fevereiro de 2025

Flashback #5 - Domingo

 


O Museu Moderno de San Telmo é uma viagem até “ao limite” um teste à existência de vida no bairro, para além da feira.
E, na modernidade minimalista do museu, que espreita, pelas grades das suas janelas, para a realidade mundana de uma manhã de feira no bairro, o interior refugia-se nas profundidades da mente, na expressão artística das vulnerabilidades do mundo exterior. 
Também na modernidade artística dos museus da cidade vive um predomínio dos criadores argentinos do século vinte e um que, tal como nos conturbados anos do século vinte latino americano, os artistas plásticos procuram, na tela e na pedra, contrariar a herança para além do passado, da nostalgia e de alguma sobranceria intelectual das elites letradas do século passado.
Para o século vinte e um dos artistas plásticos, o realismo desprendeu-se do mágico para se instalar em alternância no hiperbólico, no surrealista e na crueza teatral e performativa das suas vivências traumáticas.
Onde pululam os nossos abismos? – questiona-se o artista 
Ao longo da Calle Defensa, não se questiona a sustentabilidade dos recursos naturais entre bancas de rua, souvenirs, artesanato e roupa vintage, negoceia-se os preços com um fervor que compete com ritmo de desvalorização da moeda, porque na Argentina atual, tempo representa literalmente dinheiro.
Nem para todos.
A Mafalda, sentada no seu banco de jardim, tão sorridente e estranhamente quieta, não reclama com os avanços da populaça, que se pendura nela, para a fotografia ou para a posteridade e, se ela fosse um boneco animado não deixaria de ter opinião sobre este tempo.
Para o Che Guevara, restaurado e de cores garridas, agora na versão superstar na parede da Calle Lorenzo, emparedado atrás de um camião de mudanças, o empedrado da rua é apenas uma ténue recordação dos dias de solidão, que lhe gastava as cores mas que lhe mantinha a áurea de combatente, o único mural do planeta em que a reputação de Che coabitava em perfeita harmonia com um casal dançando Tango no empedrado decadente da cidade.
“Um duende não é um adorno, é como um amigo, portanto tens de dar um nome, falar com ele e dar-lhe de comer. É o teu primeiro?”
Sem ter a certeza de ter ultrapassado uma barreira linguística qualquer, vimo-nos rodeados de seres sem linguagem que trepavam os fios ao ritmo de uma concertina e uma mãe sorridente que emitia cartões de identidade com toda a seriedade.
Afinal, e apesar da sua aparente superficialidade mundana, o bairro ainda mantém vestígios de misticismo, poesia e concertina
E na Plaza de Mayo, nos confortes do bairro, um casal desafia o preconceito. Assim se reconstrói o Tango como um instrumento de inclusão.



domingo, 26 de janeiro de 2025

Flashback #4 - O regresso à troca direta

 

 

O parque centenário, onde a cidade acolhe os descamisados, onde as bancas trocam tudo o que o peso já não pode comprar e, no Sol obliquo da tarde portenha, não sobram os filtros nem a áurea aristocrática dos bairros privilegiados pela herança ou pelos costumes.
Troca-se tudo “Monigotes de miga de pan, caballitos de lata” e não há expetativas altas nem artistas de rua porque na feira semanal do parque centenário remendam-se vidas insuficientes / curtas e subverte-se a inflação com os princípios da troca direta.
Panelas por aros de óculos, ferramentas por brinquedos, roupa por calçado, trocam-se ciclos de vida em que, nada do que já não serve, fica esquecido nos sótãos das recordações e das aranhas, é uma economia de reciclagem total em que não se espera que os herdeiros limpem arrecadações, uma revolução de quem já não aspira à posse e se contenta com o usufruto temporário.
Para alguns, o Parque Centenário ao Sábado à tarde é a Meca portenha do pós capitalismo, sem inflação, moeda fraca ou incompetência de quem governa.
No parque Centenário sentem-se os subúrbios a palpitar, as gentes acotovelam-se no mercado sem lei, nos relvados pejados, nos lagos de repuxos e não há espaço livre para atletas que se espraiam nos verdes de Recoleta e Palermo. Aqui só há espaço para as famílias se espraiarem ao Sol, exibirem com orgulho a sua prole e as camisetas do campeão mundial abraçarem o lago que com todos partilham e os putos jogarem à bola, seja nos recintos oficiais seja nos remendos de relva que se esgueiram entre o Sol e as sombras.
Os pobres da Argentina, também eles se recusam a ceder à depressão 



quinta-feira, 23 de janeiro de 2025

Flashback #3 - Secando as roupas da velha Europa

 


Na avenida de Mayo, uma multidão assiste à festa da Calábria, com um palco cheio de crianças vestidas de trajes regionais que dançavam sons longínquos de distância, mas próximos de cultura, e a juventude no palco, mais pelo movimento e pela cor, do que através da música, procurava manter acesa a chama da nostalgia e o velhote sorria, como se nos quisesse explicar a razão da sua alegria, “A última geração de migrantes está a morrer. A nostalgia poderá então deixar de fazer parte da memória coletiva do povo” e hoje, como no passado, o sol da Argentina estava secando as roupas da velha Europa.
Uns quarteirões a ocidente, ainda na Avenida de Mayo, para lá da 9 de Julho, a avenida mais larga do mundo, tão larga que torna, por vezes, difícil a perceção da sua própria origem, a independência do país, instalou-se o Palácio Barolo, o primeiro arranha céus da américa latina, um sonho de um maçon italiano que acreditava que Buenos Aires era o último refúgio da cultura Ocidental, diante a barbárie da guerra na Europa que, segundo ele, conduziria ao extermínio da civilização humanista.
E por isso construiu uma homenagem de betão e vidro à Divina Comédia, investiu uma fortuna para a construir em tempo recorde, porque acreditava que a Europa iria soçobrar em breve, guardou três andares para ele viver, mas morreu antes do edifício estar pronto e antes da Europa sucumbir às trevas.
Na rua Hipolito Yrigoyen, não tão longe assim da Avenida de Mayo, escondido nas traseiras do Congresso da Nação Argentina vive o teatro Empire, uma alternativa teatral que, na segunda-feira à noite apresenta ao público sentado em mesas à volta de um palco que não se vê, um espetáculo de cabaret, que estende os braços à Europa, sobretudo no infortúnio e nos períodos de desorientação do velho continente.
Demencial (ligeiramente) segundo a apresentação, tendo como pano de fundo a ascensão do nazismo na Europa e a década infame na Argentina
Político, interativo com Brecht
Psicológico, a cobardia frente à ditadura do ódio, da opressão e do medo
Segundo o protagonista, mais vale um cobarde vivo que um herói morto, recordando os lugares tenentes, tão cruéis para os subordinados como submissos para os seus líderes.
Mas o protagonista vilão não é, afinal, um vilão é apenas um produto das circunstâncias e, no final, enfrenta o lugar tenente e torna-se num herói vivo.
Neste espaço sem geografia precisa, desfilam as músicas de Gardel e os poemas de Brecht como se o Oceano fosse apenas uma ponte entre os desenganos da alma argentina e as desgraças da velha Europa “Mais tarde, o sol estava secando as roupas da velha Europa” 
No final da peça o bem e a liberdade triunfa sobre o terror, o lugar tenente é morto no cabaret por uma horda de oprimidos e a moral explicita dos autores pretende simbolizar a esperança de que, no fim, e apesar dos momentos de insana loucura que assolam a Humanidade, de tempos a tempos, num qualquer final (ou apenas mais um intervalo) o bem sempre triunfa.
A peça só tem um Ato e portanto, neste palco inclusivo, a eternidade é apenas uma metáfora.
Não foi ainda esta noite que a última geração de imigrantes morreu.



terça-feira, 21 de janeiro de 2025

Flashback #2 - La ville s'agite

 


KIDZ é um trabalho coletivo que concede carta branca a cinquenta jovens artistas de todo o mundo, sem tema, forma ou enquadramento trata-se, afinal de contas, de uma ordem para criar.
( E, no mesmo espírito e uma décadas mais cedo, os velhos abriam a loja de livros de banda desenhada e questionavam-se se a banda desenhada não seria a forma mais precoce de arte contemporânea)
Na muito improvável Rua dos Francos Burgueses, no Marais que se entregou há muito às multidões amantes do consumo, e que empurrou os mais boémios para os subúrbios, entregaram aos miúdos um palacete resplandecente por fora e totalmente desventrado por dentro, o ambiente ideal para promover a destruição criativa, e eles redecoraram-no contra a tradição do bairro mas como era de borla, os sacos de papel de marcas de várias cores, cuidadosamente bordadas em tons dourados, acotovelavam-se debaixo de botas, calças e outros vestuários que homenageavam o arco-íris, pendurados em cordas de roupa , sim porque a cor parece ser a maior afirmação da juventude rebelde, pouco condescendente para com as formas ou, pelo menos, indiferentes.
Mas, e justiça lhe seja feita, Paris é uma cidade em agitação constante que se empolga com a revolução, com a contradição, com a polémica e, mais do que mais, com o protesto, contra as limitações da sua liberdade de escolha quando lhe impõem, a ela, gerente de uma ourivesaria na Place des Vosges, a obrigação de usar máscara, só porque é inverno e ninguém tem a certeza se o COVID já se tornou endemia ou contra a fome em África, o aumento do preço dos combustíveis, o aumento do custo vida, ou apenas a favor de poder protestar, sem ter de apresentar um motivo.
Na Praça da República, num fim de tarde antes de ser noite no Marais, mas depois de o Sol se pôr sobre o Canal de St. Martin, onde batelões que se empenhavam, tal amantes do Titanic, em abraçar as margens do estreito canal, e onde as margens recolhiam alguns dos boémios expulsos do centro, os criadores alternativos às tendências, a arte de rua com preocupações humanitárias, não só a liberdade para a Ucrânia, mas as 619 pessoas que desapareceram durante o governo fascista da atual primeira-ministra do Bangladesh, mas depois do Sol se pôr na praça, havia espaços de manifestação que exigiam uma nova independência para a Argélia, uma assembleia constituinte para um país latino americano, cuja bandeira desconhecia e é mesmo essa agitação cosmopolita que nos mantém vivos e que mantém viva a cidade.
A cidade estava, de facto, muito agitada para um Domingo de Sol, que outros europeus aproveitariam trazer as famílias ao parque ou comprar as últimas prendas de natal
Mas em Paris, não há desses estrangeiros, e até há, como os miúdos alemães que estudavam no restaurante do bairro onde uma sopa de cebola pode aquecer, até duas almas pelo menos, mas ou agitam ou ficam a ver e em Paris ninguém gosta de ficar a ver.
E o dia começou tranquilo, uma cidade que acorda tarde, nos bairros a norte onde o traçado histórico da cidade já foi substituído por blocos de habitação, todos muito parecidos e quase todos iguais, seis artistas ocupavam um pequeno pavilhão junto ao canal que teria sido certamente a casa dos guardas das comportas, onde, debaixo da cobertura de uma feira de natal, vendiam arte genuína, reconhecível e com elevado sentido estético, aquele que valoriza as formas com alguma soberba contra as cores, a preços de quem ainda não são jovens artistas emergentes.
Mas depois, mais a Sul o canal agita-se com o meio-dia e com a juventude inquieta que passeia os seus cães com a mesma veemência com que licita obras de arte ambíguas e com significados difíceis e, naquele dia, não fui mais capaz de não correr atrás da agitação da urbe, primeiro em processo de comoção pelo reencontro e a reconciliação entre Bresson e Parr, e finalmente, no MEP descobrindo Boris Mikhailov, o mais experimentalista, umas vezes documental, outras conceptual, pintura ou performance, fotógrafo que havia alguma vez presenciado, soviético de nascimento, ucraniano de nacionalidade, fotógrafo para o partido nas horas de trabalho, e fotógrafo erótico e de nus em casa, às escondidas do partido, do patrão e do país, afinal nesses tempos, sempre os mesmos.
Atento aos pontos cardinais da cidade que adora a revolução, sorrimos com a contradição que não deixa de representar, mais a Ocidente, a exposição de Arte Povera no sofisticado Jeau de Paumme, um pavilhão de campo dos muito monárquicos jardins das Tulherias.
Afinal de contas a Arte Povera é baseada nos elementos, construída com materiais comuns, uma espécie de arte reciclada uma forma livre de expressão, comprometida sendo a resposta com as contingências os eventos e o presente.
a resposta europeia à pop art americana.
O que deixa os franceses cheios de orgulho. apesar dos artistas serem predominante italianos.
E, enquanto aquecíamos a alma da noite fria na gastronomia de Borgonha e nos vinhos de Bordéus, na burguesa ilha de Saint Louis, não deixámos de pensar no que seria da cidade se não fosse o seu fascínio pela contradição, polémica e protesto.