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quarta-feira, 31 de julho de 2024

Sonhos de uma noite de Verão

 


Foi apenas um sonho de meia noite, entendida como uma mera metade, como se fosse possível, mas é, ter duas noites de sonho e de sonos diferentes na mesma noite.
Ou melhor, na primeira metade da mesma noite, um sono tranquilo e sem memórias e outra metade povoada de sonhos e agitação, tão cristalinos depois do amanhecer que só podia ser premonição.
Tinha viajado para Mumbai e tinha-me instalado na cidade velha, aquele pedaço de Mumbai que é cuidadosamente escondido dos estrangeiros, ruelas que não deixavam o sol entrar, mas o sonho não tinha cheiros e havia , na clarividência das imagens, um filtro social de auto censura, as ruas eram pitorescas, não pobres, todos as imagens reforçavam as cores de uma multidão orgulhosa e omitiam as misérias que escorriam pelos esgotos dos becos. 
Nada, o sonho era seco e aspiracional, uma espécie daquele Oriente asséptico que só existe nos filmes. 
Certamente influencias do orientalista Martin, o protagonista do romance de Abdulrazak Gurnah e os mistérios do seu desertor, nos confins do império britânico da costa oriental de África, mesmo encostados aos primórdios do século vinte.
Na imensa palete de culturas e de povos que coabitavam Zanzibar, a história desenvolvia-se em redor de uma família de comerciantes indianos oriundos de Calecute, Mumbai era afinal um equívoco, afinal de contas os sonhos não são assim tão precisos.
E o romance é um retrato do confronto de culturas, árabes, Somalis, Hindus e o império colonial britânico que ainda acreditava que, tal como na América, os indígenas seriam liquidados pelo tempo.
Não foram os odores exóticos do corno de África que me provocaram a agitação noturna de uma meia noite de verão, entendida como já sabemos, como metade de uma noite.
Nem a visão insensível e preconceituosa do colonialista branco.
Nem o despeito nostálgico do escritor refugiado.
Foi o mosaico complexo de culturas que me fez deambular, qual sonâmbulo, pela Mumbai deserta, na procura da propriedade que os meus antepassados me tinham deixado como herança, pelo menos era desta forma que o narrador do sonho me apresentava a mim próprio.
Era afinal uma casa modesta num bairro modesto e uma prole numerosa do ramo indiano da minha família que me esperava, de braços abertos debaixo da porta do império, junto ao mar da Índia. 
Acordei sem entender porque é que havia uma prole indiana que era minha, e aí o sonho não esclareceu, não havia nenhum Albuquerque na história, nem nenhuma possibilidade de pertencer a uma prole de casta incerta, numa aparição tão fugaz.
Mas no romance de Gurnah havia uma outra história, a de um amor proibido entre o orientalista britânico Martin e a irmã do comerciante indiano muçulmano Rehana, uma história ocultada dos pormenores com um pudor que o autor pouco espaço deixou para a imaginação do narrador dos sonhos.
Por isso mesmo acordei sem conseguir explicar a minha numerosa família indiana, porque, depois de acordado, a única imagem coerente do sonho era mesmo a porta do império e o oceano indico.
Mas, nem por isso, me esqueci da razão por que razão tão materialista viajei à India num sonho de Verão.
Chamava-se Fredrik e era o Administrador branco do Império Britânico nos confins do Corno de África, acabado de chegar da India.


segunda-feira, 22 de julho de 2024

Sons do velho Sul

 


Dentro das muralhas mora a cidade velha, ou a vila adentro como ela gosta de ser tratada. 
A velha senhora mantém-se reservada, a calçada é irregular, as pedras são de tamanhos todos diferentes e intervalos tão imprevisíveis que anunciam desastre em cada pedaço de ruga que a rua tem. 
Este semblante rústico da velha senhora, entenda-se como uma metáfora da cidade velha de Faro, intimida as hordas de estranhos, o que favorece a propagação dos ventos, do silêncio e dos perfumes que se transportam, com uma dose temperada de calor, por cima da vegetação rasteira da ria, muito para lá do Sul cristão, onde o mar termina e recomeça o continente. 
Entenda-se como uma metáfora do norte de África, como se fosse possível ouvir os sons do bazar, com tanto mar por permeio. 
É verdade que a indolência é despertada pelo verão e pelos fins de tarde de domingo e, ao redor do grande edifício amarelo, a quem chamam de fábrica da cerveja, mas que nunca foi, ouvem-se outros sons. 
Escondidos por detrás dos portões fechados, pintam-se as cores do festival Mar Motto, um festival de manifestos da tão efémera arte urbana a favor de um mar eterno.
Porque até as causas precisam de dia de folga, os manifestos de vilhs estão, como a velha senhora, em modo reservado. 
Mas na associação recreativa há uma menina vestida de negro, protegida por tatuagens com significados à prova de estranhos e provavelmente (ou não) um piercing solitário, não posso garantir, porque os meus olhos ficaram presos na caixa de madeira onde ela guardava as notas de cinco euros, sim, porque hoje há concerto, e os sons também são do Sul, a banda arrasta-nos para os sons do improviso e do jazz e a voz da miúda que canta preenche todo o pátio, em espiral, uma espécie de tornado invertido, e a miúda é compositora e o baterista tem um ar fixo nas paredes do pátio e o tipo do baixo, bate o pé e marca o ritmo, há toda uma conspiração de sons e de cumplicidades que envolvem a vintena de mesas, o mestre do som, os menos jovens de olhos gastos, mas felizes, que preparam as bebidas e que perguntam pelo nosso bem estar, como fosse possível estar mal, no fim de uma tarde de verão com um copo de vinho na mão e um som de enternecida nostalgia (ou seria apenas ao ritmo da decadência da alma velha?) na associação recreativa e cultural de músicos, despojados de tudo o que a arte não precisa. 
E ninguém estranha que, neste local do culto de pureza dos sentidos, afinal de contas as associações recreativas fazem parte do meu passado suburbano de tudo o que a cultura significava para nós, as multidões de estranhos se mantenham longe, e até o ruido dos aviões em aproximação à pista, longe de representar uma intrusão nos sons do pátio, da diva, dos músicos e da audiência que sorve a diferença em pequenos goles de vinho branco, acentua a singularidade do momento congelado no tempo, essa memória intensa mas efémera, do culto subterrâneo e pós-industrial em que qualquer um de nós se poderia ter transformado. 
Quando anoitece, a cidade veste o fato de maestro, no magnífico auditório do teatro das figuras, e a orquestra de gala oferece um espetáculo servido como uma refeição, palavras do maestro Martim, uma entrada suculenta da opera dos três vinténs de Kurt Weil, quando o Jazz invadiu despudoradamente a música clássica, uma história de gente menos recomendável mas também da mulher loura e fatal, a história que tem vários momentos, ele queria dizer andamentos e disse-o de tal forma como se a música sem letra pudesse contar uma história, sim, é verdade que a dele, a de Kurt Weil contava, "quem esteve em Berlim, sabe do que eu falo" o maestro tem um humor fino, mas não permanece imperturbável quando nos empurra cem anos para trás e nos puxa de volta, cem anos são apenas cem anos e o seu sentido de humor é também uma evidência de que conseguimos beber a história da cidade, qualquer que seja a época em que a visitamos, tal como os andamentos desta coletânea de Weil são as vieiras gratinadas do concerto. 
Cem anos é, pois, o mote da noite de gala, cem anos tem música de Gershiwn, uma rapsódia de azul, mais de quinze minutos de uma sinfonia de sons intemporais, o prato principal é servido em Manhattan, os loucos anos vinte na cidade de todos os ruídos e todas as melodias. 
Não envelheceu um minuto, assegura-nos o maestro e o solo de piano prolonga a magia das noites de Verão, cem anos depois sentimo-nos renascidos pela alma velha, não são sons do Sul, mas este Jazz do norte tem as mesmas raízes no sul profundo de África, sim também no teatro das figuras, é apesar da multidão contida que olha para o palco, sente-se a mesma brisa quente que favorece a propagação dos ventos, do silêncio e dos perfumes que se transportam, com uma dose temperada de calor, por cima da vegetação rasteira da ria, muito para lá do Sul cristão, onde o mar termina e recomeça o continente. 
Opíparo e sem ressentimentos. 
A sobremesa foi servida numa taça de cristal, sabores urbanos de Cole Porter, sem intervalos nem explicações porque já aprendemos que uma música sem letra consegue contar uma história. 
Night and Day.
Doce, crocante, quente e frio, sem compartimentos. 
Hoje descobrimos que, em Faro, ainda vive a alma velha do Sul, que intimida as hordas de estranhos e os mantém à distância.



segunda-feira, 15 de julho de 2024

Os fantasmas da liberdade

 


Vista da margem sul, da encosta do convento de Santa Clara, os anos não parecem ter passado por ela, sem rugas no horizonte, as fachadas da cidade histórica coradas pelo Sol da tarde por ser envergonhada e provinciana, e há um sotaque beirão que não descola da boémia que cheira a cerveja e invade as calçadas que serpenteiam a Sé velha. 
Olhando com atenção redobrada por cima das pontes, há um espelho de água que absorve toda a tradição que se acumulou nos séculos de vida académica e de conhecimento partilhado. 
E de boémia incontida. 
Da margem esquecida do Mondego, vive-se uma atmosfera de Outono nos jardins do convento apesar do Junho avançado, que o calendário não consegue desmentir, provavelmente porque é domingo à tarde e as tardes de domingo são tristes e nos impelem para as memórias do passado. 
Ou provavelmente porque as minhas memórias de Coimbra viveram todas do outro lado do rio, onde a ação acontece, seja qual for a geração ou a década. 
Ou porque o convento se despojou da clausura, dos hábitos austeros, orações e aí jesus, sim, quando Coimbra era também um centro do roteiro da religiosidade, uma porta da religião para o mundo laico da ciência. 
Do outro lado do rio, a uma distância segura, que não comprometa nem os rituais, nem as crenças, nem o acesso privilegiado a Deus. 
Abanava a cabeça, quase descrente, não filha, não pode ser aqui, não é aqui que mora a Bienal, Ano Zero dos fantasmas da liberdade. 
Enquanto olhava para as minhas memórias de Coimbra, há lugares assim, que passam incólumes à nossa passagem, e só as nossas rugas se refletem nas águas do rio que enchem a paisagem de cheiros a serra. 
Mas, afinal, a bienal mora mesmo aqui. 
Os corredores do convento alternam entre os despojos de um local em vias de perder a sua memória, uma pré-ruína de vazio do qual sobram apenas gritos de morcego produzidos digitalmente que percorrem os tetos do convento ao ritmo das correntes de ar, e as interpretações ousadas do presente, para que nada nos parecesse sequer familiar, como se mais importante do que o significado das coisas ou das palavras fosse a liberdade de expressão sem significados precisos. 
Arte contemporânea, portanto. 
Com locais de descanso, intervalos nas celas abertas, janelas para a cidade, sempre no chão pejado de almofadas, como se a liberdade também precisasse de pausas e de momentos de contemplação 
Há referências objetivas dos curadores da exposição ao filme de Luis Bunuel de 74, ao cinquentenário da Revolução dos Cravos, e ao centenário do manifesto surrealista de 1924.
E há uma referência muito explícita ao significado literal das palavras, os fantasmas da liberdade remetem-nos para a disputa entre o desejo e a realidade. 
Quase um lamento sobre as limitações da liberdade, não enquanto conceito, mas enquanto "paz, pão, habitação, saúde, educação" 
Apesar de, na Bienal Ano Zero, as instalações não sejam, de todo, um slogan renascido dos cinquenta anos da história da liberdade. 
O experimentalismo do século vinte e um já não se alimenta de memórias e os jovens artistas não perdem tempo a pensar como é suposto se conquistar a liberdade. 
Na outra margem, o dois cavalos engasga-se enquanto procura alcançar a praça da República, já na década de oitenta era uma relíquia, sempre sobrelotada a juventude era rebelde, mas não demasiado, ainda havia resquícios da revolução nesta geração que nasceu tarde de mais para ser verdadeiramente rebelde e anárquica e estávamos todos a ficar fora de época, quem havia de se lembrar de voltar a Coimbra sem ser estudante, procurávamos aspirar as últimas migalhas de aventura, álcool, festas e inconsciência, antes da idade adulta começasse a assumir o controlo da tua liberdade. 
O dois cavalos é a única memória nítida que me resta desta época de vapores e libidos exacerbados. 
Coimbra, finais da década de oitenta. 


Pendurados sob os tetos do corredor do primeiro piso do convento, os cartazes de Carla Filipe são únicas imagens da revolução e das memórias que vivemos dos tempos em que o tempo ainda era, para nós, imortal, as caras das mulheres que substituem os rostos dos manifestantes, não eram relevantes as causas porque o manifesto era feminista, e os tons vintage dos cartazes eram a afirmação da nossa época, em que a liberdade não era um conceito, tinha corpo, imagem, cor e rosto humano. 
São também, e afinal de contas, apenas memórias do tempo das nossas liberdades conquistadas, no tempo em que teve de ser, nem sempre as melhores memórias, quando queríamos ser livres mas não sabíamos o que verdadeiramente isso representava e quando percebemos que a liberdade significava muito frequentemente solidão e desassossego. 
E em Coimbra, não há vestígios da passagem do tempo e só as nossas rugas se refletem nas águas do rio que enchem a paisagem de uma nostalgia bem resolvida. 
Sem vapores nem libidos exacerbadas. 
Quantos cavalos são necessários para mudar o mundo? - questiona-se a artista Priscilla Fernandes, mas o curador apressa-se a assegurar que se trata apenas de uma sátira, mas nas paredes do fim da exposição, os cavalos surgem libertos de conotações de dominação, heroísmo, autoridade e força ostensivo, dedicando-se ao lazer, um privilégio que se julgava exclusivo dos humanos. 
Quando curvávamos, a todo o vapor, no Dois Cavalos da República de Coimbra, sabíamos, pela experiência dos outros, que nunca iríamos virar, e a suspensão do Citroen era a única garantia que a nossa liberdade precisava. 
Não há fantasmas que durem sempre, quando insistimos em cultivar o imaginário da liberdade 
Mesmo que tenhamos de regressar às longínquas memórias de Coimbra.




domingo, 7 de julho de 2024

O último comboio para o Estoril

 

Há lugares assim. Quando o mundo se desfaz em insanidade, uma elite de gente que antecipa o Apocalipse, refugia-se a uma distância de segurança, e a periferia mais ostracizada ganha uma nova luz, como se o miúdo gordo e caixa de óculos, um fantasma que percorria, solitário, os corredores da escola, renascesse como o mago da bola, uma nova moda em que todos ansiassem ser olhos míopes e corpo de panda. 
Em tempos de precipício, as pessoas encontram conforto na imperfeição e nas dificuldades de socialização, como se fosse uma proteção contra a fúria dos infames.
Na casa Sommer, em Cascais, o projeto de autor chama-se blackout, mas a atmosfera de filme negro que cobre o portfólio de quarenta e cinco fotografias que, a partir do presente, retratam o início dos anos quarenta no novo eixo de centralidade e de paz da Europa de uma escuridão esculpida a ferro e fogo, recorda-nos sobretudo a bipolaridade que corrói a mente dos refugiados, entre a euforia de poderem respirar a tranquilidade e a culpa de a respirarem enquanto os outros aniquilam o que ainda sobrou das suas memórias. 
Uma dicotomia construída de glamour e de conspirações sonhadas, por aqueles que sabem, mas ainda ousam duvidar, que vão ser párias para todo o seu futuro. 
Lisboa, Estoril algures depois de Junho de 1940 e o preto e branco de alto contraste das fotografias do autor e das provas documentais que garantem que aqui se viveu a antecâmara do fim do mundo, e uma multidão de seres de hábitos e roupas estranhas mudaram a paisagem mental dos nossos atordoados antepassados. 
Como se nascesse na pradaria, e sem tempo de construção, uma metrópole alienígena. 
Nas vitrines da exposição do Alexandre, uma capa do Diário de Lisboa de um qualquer dia de verão de 1943, noticiava as manobras de simulação dos bombardeamentos em Lisboa que nunca vieram, o mesmo jornal que citava fontes do Terceiro Reich para desvalorizar os resultados da ofensiva soviética e fontes de Londres para noticiar as missões aéreas sobre Berlim. 
De repente, o regime que não gosta de se questionar, sente-se assolado pelas subtilezas da neutralidade. 
A história do autor conta outras estórias, é humana a necessidade de construir enredos que facilitem a compreensão humana do colapso de valores que representou a última guerra mundial, como a paranoia dos ataques aéreos surpresa e a do amor impossível entre uma refugiada alemã e um espião inglês. 
Dentro da casa Soller, os visitantes são espaçados, mas lá fora, e apesar do sol ser um sorriso sobre o azul, o vento não segura as copas das árvores, nem as bandeiras do porto, nem as saias das mulheres de vestidos brancos e óculos escuros e, de repente, há regressos do passado que moldam o presente, e as ruas do presente da linha do Estoril estão lotadas dos novos expatriados, que fazem compras no mercado saloio e inflacionam os refúgios dos locais.
E não há ainda sinais de mundo em carne viva. 
As saias das mulheres de vestido branco e de óculos escuros são, claro, apenas uma metáfora à nostalgia dos anos quarenta, uma tentativa (aliás indecente) de procurar semelhanças nos tempos de hoje, uma insinuação de que poderemos estar, mais uma vez, à beira do abismo, apenas alegorias usadas para manter o interesse na prosa, porque hoje a diversidade do mundo que se instala por cá, já não causa temor nem espanto, e já sabemos todos que não é possível prever o futuro só com base no conhecimento passado. 


E, hoje, a linha de Estoril é um promontório de ventos cruzados, às dezenas de línguas e dialetos da Europa que se estendem desde o Norte e desde o Leste, sobrepõe-se um sotaque que sobrevoa o anticiclone dos Açores, há afinal um vento forte que sopra do ocidente e de repente, só depois de termos visitado o passado na casa de Sommer, nos passou pela cabeça que a Linha, nos confins do mundo, segundo a geografia chinesa e a civilidade europeia, é testemunha da inversão do último longo ciclo de emigração no mundo. 
Ann, a minha nova amiga de Miami assegurava-me hoje que há uma febre lusitana daqueles que sabem onde fica a Europa. 
Sim, Ann, eles andam por aí, e não há nenhuma iminência que pareça justificar esta nova centralidade do mundo ocidental, na periferia saloia do Atlântico Norte, mas não consigo deixar de pensar que tem de haver algo de premonitório neste súbito fascínio pelas festas populares, pelas sardinhas assadas e pela indolência dos nossos brandos costumes e até pela nossa falta de ambição. 
Falta o glamour, as sombras contrastadas da urgência e a intensidade das vidas que antecedem a iminência do fim do mundo, mas, ao contrário do que se passava na geração de quarenta em que Lisboa era a única ponte possível para a América, estes parecem vir para ficar. 
Veem afinal a fugir de quem? 
Lá em baixo, para lá da baía, há uma multidão de risos e de gente feliz, em harmonia com a terra prometida. 
Às cinco em ponto, na gare da estação ferroviária, o comboio apitou uma vez só e, quando se afastava ronceiro, mas determinado, a caminho do pôr do Sol e de Lisboa, parecia dirigir-se a um final perfeito de um filme dos colonos pioneiros do antigo oeste. 
Mas o comboio não era a vapor e a última imagem que retive na memória já não era a preto e branco. 
E, na exposição da casa Soller, cada imagem tinha um número e um adjetivo.
Muitos deles premonitórios.