Foi apenas um sonho de meia noite, entendida como uma mera metade, como se fosse possível, mas é, ter duas noites de sonho e de sonos diferentes na mesma noite.
Ou melhor, na primeira metade da mesma noite, um sono tranquilo e sem memórias e outra metade povoada de sonhos e agitação, tão cristalinos depois do amanhecer que só podia ser premonição.
Tinha viajado para Mumbai e tinha-me instalado na cidade velha, aquele pedaço de Mumbai que é cuidadosamente escondido dos estrangeiros, ruelas que não deixavam o sol entrar, mas o sonho não tinha cheiros e havia , na clarividência das imagens, um filtro social de auto censura, as ruas eram pitorescas, não pobres, todos as imagens reforçavam as cores de uma multidão orgulhosa e omitiam as misérias que escorriam pelos esgotos dos becos.
Nada, o sonho era seco e aspiracional, uma espécie daquele Oriente asséptico que só existe nos filmes.
Certamente influencias do orientalista Martin, o protagonista do romance de Abdulrazak Gurnah e os mistérios do seu desertor, nos confins do império britânico da costa oriental de África, mesmo encostados aos primórdios do século vinte.
Na imensa palete de culturas e de povos que coabitavam Zanzibar, a história desenvolvia-se em redor de uma família de comerciantes indianos oriundos de Calecute, Mumbai era afinal um equívoco, afinal de contas os sonhos não são assim tão precisos.
E o romance é um retrato do confronto de culturas, árabes, Somalis, Hindus e o império colonial britânico que ainda acreditava que, tal como na América, os indígenas seriam liquidados pelo tempo.
Não foram os odores exóticos do corno de África que me provocaram a agitação noturna de uma meia noite de verão, entendida como já sabemos, como metade de uma noite.
Nem a visão insensível e preconceituosa do colonialista branco.
Nem o despeito nostálgico do escritor refugiado.
Foi o mosaico complexo de culturas que me fez deambular, qual sonâmbulo, pela Mumbai deserta, na procura da propriedade que os meus antepassados me tinham deixado como herança, pelo menos era desta forma que o narrador do sonho me apresentava a mim próprio.
Era afinal uma casa modesta num bairro modesto e uma prole numerosa do ramo indiano da minha família que me esperava, de braços abertos debaixo da porta do império, junto ao mar da Índia.
Acordei sem entender porque é que havia uma prole indiana que era minha, e aí o sonho não esclareceu, não havia nenhum Albuquerque na história, nem nenhuma possibilidade de pertencer a uma prole de casta incerta, numa aparição tão fugaz.
Mas no romance de Gurnah havia uma outra história, a de um amor proibido entre o orientalista britânico Martin e a irmã do comerciante indiano muçulmano Rehana, uma história ocultada dos pormenores com um pudor que o autor pouco espaço deixou para a imaginação do narrador dos sonhos.
Por isso mesmo acordei sem conseguir explicar a minha numerosa família indiana, porque, depois de acordado, a única imagem coerente do sonho era mesmo a porta do império e o oceano indico.
Mas, nem por isso, me esqueci da razão por que razão tão materialista viajei à India num sonho de Verão.
Chamava-se Fredrik e era o Administrador branco do Império Britânico nos confins do Corno de África, acabado de chegar da India.