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sábado, 27 de dezembro de 2014

Irmandade




Subi logo de manhã à Torre da redescoberta Irmandade à procura de um lugar privilegiado entre os apóstolos do Natal, e sentei-me à espera.
Era hoje que iria confirmar se o Pai Natal afinal sempre atravessava os céus num trenó puxado por centenas de renas.
Por isso fui cedo. Assim poderia estudar as rotas de mais perto, com mais tempo, sem as agitações de última hora, acender as luzes da pista de aterragem e, quem sabe, afagar pelo menos uma haste de rena, passassem elas ao nível da torre.
E se Ele fosse apenas um ser vulgar, anónimo, e, quão vampiro, se transformava na noite mágica a ele e a todos os que persistissem em vaguear na rua após o anoitecer, uma espécie de legião de Cinderellas a fugir da meia-noite inundados de presentes, e se as renas fossem apenas uma mistificação?



Tornei-me assim mais atento aos seres normais, com a proteção da Irmandade e a segurança das alturas.
E as horas passaram, o Sol subiu sem vergonha e desceu escondido entre o cinzento das nuvens.
E eu cansei-me de esperar. Afinal de contas não queria correr o risco de me tornar vampiro quando o sino da torre tocasse as doze badaladas
Do meio-dia ou da meia-noite!

Desci a torre a correr , convencido que estava a ser vigiado por seres extraterrestres, sem conseguir distinguir o que era a magia do Natal e um filme de ficção cientifica!


Pássaros




Não havia tempestade no mar por isso pássaros em terra na manhã de Natal só podia querer significar que o Homem dos presentes, do trenó e das renas douradas tinha espalhado a confusão entre a passarada, logo ali, na foz do mar!
Havia musgo na passadeira, poças de água de uma noite de maré cheia, um céu contornado por azul do mar, portanto uma noite de estrelas, um rasto de estrelas cadentes que, contrariando as leis da física, subiram rio acima, mal o sino protetor dos pescadores da margem sul tocou as doze badaladas, e os homens do mar nem perceberam a agitação dos pássaros porque a missa do galo tinha apenas começado.



A agitação, a perplexidade e insanidade matinal dos pássaros da foz do mar revelavam sinais de uma noite mal dormida, à procura de um refúgio das fantasias de Natal.
Quando o bando de pombos virou a suas cabecinhas escanzeladas na minha direção, numa sincronia impossível num bando tão grande, lembrei-me do grande mestre do suspense e fiquei assustado
Mas afinal de contas, apenas procuravam o Sol e eu era o único ser assustador que por ali andava.
Debrucei-me no espelho retrovisor de um carro transeunte e só vi um velho de barba branca e de gorro encarnado.

E os pássaros voaram!



sexta-feira, 26 de dezembro de 2014

O comboio fantasma



A imagem do comboio a cirandar no vale escuro do Mondego oeste na escura noite de natal, assaltou-me os sonhos.
Apareceu do escuro, só poderia ter aparecido da curva do rio, para lá da Figueira, a caminho das Caldas, duas carruagens sem locomotiva, entre o escuro e a berma, e o meu olhar fustigado pela vertigem da autoestrada reparou que vinha quase vazio, porque os vultos não sobressaiam da luz, aquela luz de fim de festa, amarelo sujo, sinónimo de melancolia de uma celebração que não sobreviveu ao regresso.
Na linha do Oeste, concorrendo com a autoestrada escura, esta árvore de natal rolante e de cores sóbrias percorria o vale a cumprir um horário absurdo, porque na noite de natal não é pressuposto vislumbrar o comboio fantasma, porque na noite de todas as estrelas, o pai natal deve sobrevoar o vale num trenó guiado por renas sábias e no velho trem do oeste só o revisor sobressaia, hirto como uma rocha cinzenta, e até de cima da vertigem da velocidade eu consegui perceber que ele furava bilhetes e não entregava presentes.

Tão fugaz foi a visão, que sonhei toda a noite com o comboio fantasma que não se cansava de apitar, ligando todas as imagens desfocadas que coleccionara no dia de Natal!


segunda-feira, 1 de dezembro de 2014

Seres (não imaginados) imaginários




Na quinta-feira de noite cerrada, chovia tempestade nas ruas.
Sem parar, sem parar nunca mais.
E não havia sombras que não as das árvores que tremiam de frio, de humidade e de medo de caírem.
Os faróis dos últimos automóveis despenhavam-se em lagos agitados de água mista, doce vinda do céu, salgada empurrada pelo mar.
Poucos se lembravam da mesma noite de tragédia, algures ano longe de 67.
Mas às sete e cinquenta e nove, por detrás dos portões calcinados da quinta da vila, moviam-se dezenas de seres que rondavam os faróis com trejeitos de mortos vivos de sorriso aberto e espírito sem resquícios de conformismo, daquele conformismo que antecede a falência dos sentidos vitais.
Eram apenas homens e mulheres que vivem em buracos "quando a tempestade vier já estamos escondidos no covil" que se alimentam do que a caridade lhes dá, que rondam por ali ou por aqui sem destino, mas com vontade.
E gratidão, e humor malandro e uma delicadeza que se expressa em diversas línguas, sim porque " tu, ó cabo verdiano, a tua língua não é língua" -diz o moçambicano, ri-se o português, agradece o moldavo
"Desculpe ó menina" enquanto aceitam tudo, guardam o que podem e aproveitam para falar, porque falar espanta os fantasmas e não perdem o sentido prático de comer enquanto falam, sem vergonha de pedir enquanto comem.
Sem sofreguidão, todos nós rodeados de uma tempestade que transforma as árvores enormes da quinta no Adamastor, que virá com certeza, assim que todos partirmos.
Sem lar, mas nem parece que não têm abrigo ou destino!



" porque o homem inventa deuses para dançar com eles e para eles, e brinca aos animais para poder gritar como eles e cantar e voar como eles e perder a consciência de ser homem e poder ser humano e divino"